terça-feira, 20 de novembro de 2007

O Sonho

Durante alguns anos vivi na Costa do Castelo, num velho prédio de azulejos debruçado sobre Lisboa e o Tejo- o 54- e confinando com as muralhas do Castelo através de um jardim resiliente à intervenção humana. Como trabalhava no Principe Real, no espaço do atelier do Arquitecto Conceição Silva fazia, a pé, todos os dias o trajecto da descida da colina até ao Rossio e da subida do Chiado. Às vezes vezes fazia os meus desvios.
Lembro-me que era o tempo dos jacarandás florirem, fazia calor e numa rua perto da Sé um portão grande, verde, fez-me parar. De dentro um cheiro intenso a especiarias lembrou-me outras paragens, noutros oceanos.

Não isto não é o sonho. O sonho vem a seguir.

Recentemente numa aula de Planeamento Territorial falava-se de Lisboa, das possibilidades de pensar uma Lisboa com, mas também para além, dos movimentos e interesses imobiliários e voltou a memória das especiarias, por trás do portão verde, naquela tarde na Sé.

As cidades têm memória? os sítios têm um espírito?

O meu sonho tem nome: chama-se "As novas feitorias".

A Continuar...

sexta-feira, 9 de novembro de 2007

A Promessa


Cristopher Alexander sugere o conceito de totalidade (wholeness) como ponto de partida para qualquer acção do homem ou duma comunidade sobre o território. David Deutsch, autor de "The Fabric of Reality", do Centre for Quantum Computation da Universidade de Oxford falava recentemente numa "Ted talks" em lugares que continham em si a essência estrutural de toda a restante realidade física referindo-se à relação entre ao planeta terra e o universo. A mesma ligação se poderia fazer entre certos lugares da terra e todo o planeta, ou entre o microcósmico e o macrocósmico. O Feng-shui dos chineses trata exactamente disto, da procura dos lugares da terra "perfeitos" nos sentido da sua essencialidade. Esses são os lugares sagrados, portas para a totalidade. Duma maneira menos ambiciosa o Feng-shui procurar também reconhecer, respeitar e eventualmente curar o espírito do lugar. Cristopher Alexander pode ser reconhecido nessa tradição de respeito pelo que está, seja isso natural ou o resultado de qualquer forma de intervenção humana.

O respeito pela totalidade tem em Alexander uma dimensão temporal e espacial. Trata-se de reconhecer um local como o nó de uma rede complexa de dimensão universal sugerindo ao mesmo tempo que o "novo deve sempre surgir de acordo com o que lá (no espaço) está agora e o que esteve lá antes".

Por outro lado Alexander estabelece um nexo causal entre o lugar e os sentimentos dos sujeitos que os habitam:
- "We must act out of the knowledge that if we violate the deep structure, we will not only violate the place. We will, at a profound level, also damage our own feelings and our own sensibilities."
O que, lido de pernas para o ar, significa que respeitar o espirito do lugar significa também respeitar-nos a nós próprios e contribuir para o nosso desenvolvimento pessoal. Não nos alongaremos aqui mas, no essencial, aceitaremos e seguiremos a metodologia de Alexander na nossa análise do Bairro da Quinta da Serra.

Procuraremos sentir o bairro por dentro na sua totalidade, na sua especifidade, na sua ligação com África, com a Tabanka do meu amigo Junilto Netchemo em Orango Grande, a saudade dos dias inteiros com os amigos gritando para afastar os Santchos (macacos) dos arrozais, dos peixes apanhados à mão na maré vazia e assados na praia, a fruta crescendo nas árvores, o vinho di palma, mas também o pesadelo das guerras, a imigração e as saudades da terra e a imigração outra vez, cada vez mais longe da terra. Das mulheres que saem ás 6 da manhã para ir trabalhar nas limpezas e deixam os filhos de 11 anos a tratarem dos irmãos mais novos, os maridos em Espanha e a familia no Cabo Verde: vidas heróicas sem narrador. Dos cheiros, o peixe e a entremeada a assar na rua. Do amor e do ódio nos olhares. Da ternura das crianças. Da violência. Do silêncio onde crescem todas as formas de violência. Da polícia nas ruas como em Estado de sítio. Do silêncio da cumplicidade e do medo. Todas estas coisas juntas que se agarram à pele, que nos sujam, que no exaltam e que nos incendeiam e nos fazem voltar mesmo quando prometemos que nunca mais. É sobre isso que vou falar. Fica prometido.

Próximo post: O Sonho

quarta-feira, 7 de novembro de 2007

Excerto de uma impressão

Texto retirado de um e-mail que enviei quase no principio da nossa acção no bairro, a um amigo que está a fazer um doutoramento em geografia no King´s College London:

...."No caso do Bairro é muito interessante a forma como, sobretudo 2 culturas africanas, recontextualizadas geraram um espaço onde tu sentes uma espécie de euforia de liberdade que gera espaços em mutação organica e continua. Para bem e para mal aquele espaço físico reflecte e gera de uma forma quase pura as relações sociais e culturais do bairro.


O que se sente nos bairros de realojamento é que esta organicidade violada introduz uma serie de "perversões" nessa cultura. p.e. o principio da solidariedade e da entreajuda assume a forma da protecção dos comportamentos desviantes porque o sistema de autocontrolo da comunidade cai por falta de capacidade de exercicio. Em prédios altos não consegues ver o que se passa cá em baixo na rua. Por oposição, há tempos alguém me dizia: "nos bairros de barracas todos os vizinhos se viram, pelo menos uma vez, nus". A ausência de um sistema autoregulado gera o medo. O medo das represálias. O castigo infligido aos que "chibam", que denunciam, quebram a "solidaridariedade", procura ser exemplar e pode atingir uma dimensão de pesadelo. O principio está lá: o código da solidariedade entre pares, mas sem autoregulação, tomado por dentro. Dito isto, não quer dizer que o que descrevi também não se passe no bairro; passa-se, só que menos.

Intervir nestes bairros carece, tem carecido, de uma visão holística, sistémica. Um bocadinho modernista, às vezes paternalista, o discurso encobre muitas vezes processos de investimento imobiliário em que as autarquias esquecem os que não têm voz política. Por isso estes processos são antes do mais processos políticos. Processos de luta pela justiça social e pelos direitos humanos a quem se nega o direito a ser sujeito."...

Antecedentes


Desenho de Indira Moreira

Faz já muitos anos encontrei num alfarrabista um livro que me chamou a atenção para a simplicidade e profundidade com que tratava temas complexos da construção de edificios e da cidade. O livro tem-me acompanhado desde aí e chama-se "The timeless way of Building" de Christopher Alexander.

Há cerca de um ano comecei a coordenar um projecto de inclusão social na Quinta da Serra, um bairro de barracas do Prior Velho. Ver Blog
O território, foi desde o principio, a dimensão omnipresente numa acção que se centrava no sujeito e nas chamadas dinâmicas comunitárias. A gramática da linguagem de padrões de Alexander foi essencial à representação holistica e empirica do bairro como instrumento de acção discernida. De alguma maneira, cada um de nós, que vivemos o bairro por dentro, fomos construindo uma representação estrutural e causal do bairro em que agimos ou vivemos.

Há cerca de um mês iniciei o meu Mestrado em Gestão de Território e Urbanismo, que é uma janela para uma reflexão mais aprofundada, no âmbito de um Doutoramento, sobre Inclusão Social e a filosofia política de Hannah Arendt. O trabalho da disciplina de Fundamentos de Planeamento Territorial que aqui se inicia com este blog será o lugar de fixação dessa representação do bairro, assente na acção. Pretende também ser uma contribuição para a definição de um programa de intervenção urbana.